Quando se fala em Transtorno do Espectro Autista, o debate quase sempre se concentra no diagnóstico, no início do acompanhamento e na fase da infância. Pouco se discute, no entanto, sobre o que acontece quando essas crianças crescem, atravessam a vida escolar e chegam à idade adulta. Pessoas autistas envelhecem, constroem trajetórias, buscam autonomia, trabalho e participação plena na sociedade. É diante dessa lacuna que Brasília sedia, nesta segunda e terça-feira (15 e 16 de dezembro), o 1º Fórum da Empregabilidade e das Relações Profissionais Saudáveis para o Jovem e o Adulto Autista, iniciativa que propõe ampliar o olhar sobre o espectro e discutir caminhos concretos para a inclusão profissional e social na vida adulta.
O evento acontece no auditório da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) e tem como proposta central a construção de estratégias efetivas para a inclusão profissional de pessoas autistas, articulando políticas públicas, inovação social, tecnologia e experiências internacionais que já apresentam resultados consolidados. O fórum é gratuito, com classificação livre, e voltado a profissionais de recursos humanos, gestores públicos, empresários, estudantes, familiares, pessoas autistas e demais interessados na causa.
O formato híbrido, com transmissão ao vivo pelo YouTube, tradução em Libras e legendagem em tempo real, amplia o acesso às discussões.
Experiência internacional e articulação no Brasil
Idealizado pelo empresário brasiliense Tomás Strauss, da empresa de inovação MajorTom, o fórum é realizado em parceria com a Specialisterne, uma organização dinamarquesa que já emprega cerca de 10 mil pessoas autistas em diferentes países, sendo mil no Brasil, e com a Revista Autismo, considerada a maior plataforma jornalística sobre o tema na América Latina.
Para Tomás Strauss, o fórum representa um marco para o debate sobre inclusão profissional na capital federal. “Trazer esse debate para Brasília é fundamental porque estamos falando de um modelo que já funciona no mundo real. Existe hoje uma empresa de origem dinamarquesa que emprega cerca de 10 mil pessoas autistas em grandes companhias globais, em funções estratégicas e altamente qualificadas. O que estamos discutindo aqui é como adaptar essa experiência à realidade brasileira e criar caminhos concretos para a inclusão profissional de milhões de autistas que hoje estão fora do mercado de trabalho, não por falta de capacidade, mas por ausência de oportunidade e preparo das empresas”, afirmou.
Pai de uma criança autista nível 2 de suporte, Tomás também falou a partir de uma experiência pessoal. Para ele, pensar em empregabilidade é pensar no futuro de milhões de brasileiros que podem permanecer à margem do mercado de trabalho caso não haja políticas e práticas inclusivas efetivas.
Um dos diferenciais do fórum é a centralidade dada às próprias pessoas autistas.A programação, distribuída ao longo de dois dias, inclui palestras magnas, painéis internacionais, debates com especialistas em recursos humanos, gestores públicos e representantes do setor privado, além de grupos de trabalho voltados à elaboração do Manual de Boas Práticas para a Empregabilidade de Jovens e Adultos Autistas. Entre os destaques estão a palestra “Empregabilidade e Autismo: Potencialidades e Desafios”, com Marcelo Vitoriano, presidente da Specialisterne Brasil, e a participação on-line de José Segundo, CEO da Specialisterne Espanha, que apresenta experiências europeias de inclusão profissional. Mesas-redondas mediadas por profissionais autistas que atuam no mercado público e privado do Distrito Federal também integram a programação.
Modelo criado na Dinamarca chega ao debate no DF
Durante o evento, Marcelo Vitoriano, presidente da Specialisterne Brasil, conversou com o Jornal de Brasília sobre a trajetória e o propósito da organização, criada na Dinamarca, em 2004.
“A Specialisterne foi criada a partir da inquietação de uma família que buscava alternativas para o futuro profissional de um filho autista. Ao pesquisar iniciativas existentes à época, o fundador Torquil encontrou poucas experiências estruturadas no mundo, o que motivou a criação de um modelo que atua simultaneamente na capacitação de pessoas autistas e no preparo das empresas para recebê-las”, detalhou.
No Brasil, a Specialisterne iniciou sua atuação em 2015, com operações efetivas a partir de 2016. Atualmente, desenvolve programas gratuitos de capacitação para pessoas autistas e estabelece parcerias com empresas interessadas em contratar esses profissionais, promovendo adaptações de processos, orientação às equipes e identificação de funções compatíveis com as habilidades de cada pessoa. Com sede em São Paulo, a organização já atua em estados como Rio de Janeiro e Pernambuco e planeja expandir para todas as regiões do país. Brasília, segundo Marcelo, está entre as prioridades estratégicas.
Vivência no espectro
A perspectiva de quem vive o autismo no cotidiano também esteve presente no evento. Moradora de Taguatinga, Vitória Helen, de 27 anos, participou do fórum na área de produção da cerimônia e também como mulher autista nível 1 de suporte e mãe de Dante, de 5 anos, autista nível 2. Para ela, o evento representa um avanço importante, ainda que inicial, no debate sobre inclusão profissional e políticas públicas voltadas às pessoas no espectro.
“Acho que foi o primeiro passo. Ainda há muito a ser feito. É preciso entender que o autismo é um espectro e não um rótulo, não é um estigma no qual a pessoa vai viver sempre da mesma forma”, avaliou.
Segundo ela, compreender que os níveis de suporte podem variar ao longo da vida é fundamental. “Uma pessoa nível 2 pode, com intervenções adequadas, passar para o nível 1. Da mesma forma, sem suporte, alguém pode regredir. O autismo não é estático”, explicou.
Ao comentar iniciativas recentes do Governo do Distrito Federal, como a criação do Centro de Referência Especializado em Transtorno do Espectro Autista (CRETEA-DF), Vitória fez uma análise crítica. Embora reconheça a importância da proposta e da estrutura física, demonstrou preocupação com a continuidade e a qualidade do atendimento. “A minha maior preocupação é com a durabilidade. Muitos projetos começam bem e depois são abandonados. É necessário ter pessoas qualificadas, profissionais convocados para assumir essas gestões”, afirmou.
Como exemplo, Vitória citou a sala de descompressão sensorial instalada na Rodoviária do Plano Piloto após a privatização do espaço. Para ela, a iniciativa perde eficácia quando inserida em um ambiente marcado por intensa poluição visual e sonora. “Não adianta ter uma sala de descompressão se, ao sair dela, a pessoa volta imediatamente para um ambiente extremamente estressante, com tantas propagandas em telas de LED”, pontuou.
Vitória descobriu o diagnóstico do filho Dante aos 2 anos de idade e, pouco depois, recebeu o próprio diagnóstico, aos 25 anos, como mulher autista nível 1 de suporte e com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Para ela, o conhecimento é o principal caminho para enfrentar esse momento.
“É muito assustador no começo. Eu fiquei muito triste e tive medo de o meu filho sofrer tudo o que eu sofri. O que me ajudou foi buscar informação, entender o que é o autismo, acompanhar conteúdos de outros autistas e de profissionais. Hoje temos acesso à internet e a muito conhecimento, e isso faz diferença”, afirmou.
Vitória ressaltou ainda que, acima de qualquer intervenção técnica, o amor e a validação são essenciais no desenvolvimento das crianças. “O autista não é apático. Ele sente tristeza, solidão e insegurança. Por isso, precisa ainda mais de apoio, incentivo e reconhecimento. A melhor terapia que um pai ou uma mãe pode oferecer é amar e mostrar que ele é querido”, concluiu.